A experiência na concepção gráfica e design do livro Orixás de Pierre Verger. Tanto na primeira edição em 1981 quanto na nova edição desta obra singular.
Um design para Verger - Texto Enéas Guerra
São ótimas as recordações da época em que convivi com Pierre Verger durante as edições de arte que realizei de vários de seus livros. A primeira lembrança de um trabalho por mim realizado com a obra fotográfica de Pierre Verger foi o design de um cartaz para uma exposição dele em Salvador em 1976.
Após esta data, já no final da década de 70, Verger, com vários livros publicados no exterior e vivendo há muitos anos na Bahia, continuava quase desconhecido no Brasil. Suas fotos sobre o Brasil apenas tinham sido publicadas na revista O Cruzeiro no final das décadas de 40 e início de 50, com textos do jornalista baiano Odorico Tavares e outros profissionais, além de poucos textos em português disponíveis.
Animados em publicar pela primeira vez livros de Pierre Verger no Brasil, Arlete Soares, Maria Aparecida da Nóbrega, Arnaldo Grebler e eu criamos em 1980 a editora Corrupio, celebrando nossa realização com a edição do livro Retratos da Bahia − 1946 a 1952.
Posteriormente, quando iniciamos o projeto editorial do livro Orixás, em 1981, Verger mostrou um entusiasmo contagiante. Durante o trabalho, ficamos horas e horas, dias e dias dedicados a planejar a edição. Pierre Verger tinha na cabeça tudo o que desejava para sua obra ser inserida no contexto gráfico de um livro, desde a sequência dos capítulos e suas fotos correspondentes, até o conceito visual do livro, a elaboração da paginação, a mise en page, como ele dizia.
A partir da leitura dos originais e do meu entendimento do conteúdo, sabendo o que Verger desejava, iniciamos a concepção gráfica e o design de Orixás. Fiz opção por um formato de livro confortável, com a definição do corte das fotos na paginação, e a escolha da tipografia mais adequada para o texto geral dos capítulos, suas notas e legendas para as fotos, além de uma atenção cuidadosa com a acentuação nas palavras em yorubá.
Recordo-me que, no andamento da edição, em determinados dias nos reuníamos, Verger e eu, para mostrar, avaliar e discutir o que tinha sido elaborado, e eram reuniões de trabalho prazerosas. Ele demonstrava satisfação com as novas ideias sobre o design e expressava admiração, com expressões próprias no seu sotaque característico. Era sempre leve e feliz o ambiente de trabalho com Verger, ele sempre aceitava com respeito e de bom grado as sugestões. Lembro-me, por exemplo, de dois momentos, como o do capítulo “Iniciação”, diante da imagem que mostra um delicado gesto de condução de uma iniciada, propus que na página ao lado tivesse um detalhe ampliado daquele gesto, mesmo que fosse captado de uma outra foto que Verger registrou na sequência daquele instante de afeto. No capítulo cinco, “Ogum”, criei duas ilustrações com os traçados das trajetórias dos rituais e anotei o título “Deuses”, na segunda ilustração, ao invés de “Orixás” como tinha no esboço feito por Carybé. Ao mostrar para Verger as ilustrações, ele pediu para manter o título “Deuses”, que apreciava mais.
É importante registrar também que na mesma época da concepção do livro Orixás foram criados e produzidos dois outros livros, Oxossi, o caçador e Lendas dos Orixás, ambos publicados pela Corrupio ainda em 1981.
Quem não viveu a época da produção gráfica artesanal, não faz ideia o quanto era trabalhoso produzir um livro, principalmente quando incluía imagens, fotografias, ilustrações e gravuras. A primeira edição do livro Orixás foi feita com a composição do texto em linotipo, que, em uma definição simples, era uma máquina com teclado cuja matéria prima era chumbo derretido e fundido em uma matriz para impressão em papéis. As provas de composição de texto eram coladas em arte-final em papéis cartonados, nas páginas originais correspondentes, para ser produzido um filme em acetato de nome fotolito, a matriz de gravação das chapas de impressão.
O processo hoje é mais fácil. Nesta nova edição inserimos algumas intervenções gráficas, propondo melhorar o conforto para a leitura. Já a qualidade das fotos foi possível elaborar com êxito graças ao tratamento dado aos negativos originais de Verger no laboratório de restauro e digitalização da Fundação Pierre Verger e à impressão full black, um tritone, dois tons em preto e um em cinza, com o uso de novas tecnologias de produção gráfica. Com muita satisfação vemos o valioso acervo de Verger sendo extremamente bem cuidado e preservado por pessoas dedicadas e comprometidas em fazer o melhor pela Fundação Pierre Verger.
Este novo projeto editorial do livro Orixás que agora realizamos tem valiosos significados para mim: primeiro, pela decisão de manter a proposta atual mais próxima à original, concebida por Verger. E, segundo, pela minha participação na edição de arte, trinta e sete anos após a primeira edição do livro, obra que continuará assim fazendo história na cultura afro-brasileira.
Afinal, o que mais marcou a minha memória, depois desses anos passados, foi o imenso prazer de ter dialogado com Pierre Fatumbi Verger, tanto na elaboração do design de seus livros como, sobretudo, na convivência com um ser humano especial, gentil, despojado de bens materiais, afetuoso e generoso com as pessoas mais simples. Verger tinha uma dedicação apaixonada pelo trabalho, e era dono de um humor sutil e refinado. Sempre que trabalhávamos em sua casa, elegantemente ele sempre oferecia “um mau chá ou um mau café”, como ele costumava dizer.
Enéas Guerra
Designer, editor e ilustrador
Membro do Conselho Curador da Fundação Pierre Verger
Texto originalmente publicado na nova edição do livro Orixás de Pierre Verger