Apenas um cidadão

Zulu Araújo no lançamento de Apenas um Cidadão

Conversa com Zulu Araújo, autor de Apenas um cidadão

Entrevista realizada pela jornalista Nilma Gonçalves

‘Apenas um Cidadão’ é sua estreia literária. O que o leitor vai encontrar em suas páginas?
O leitor encontrará fragmentos das minhas memórias guardadas ao longo de mais de 60 anos. Encontrará também versões de histórias divertidas pelas quais passei, momentos familiares e os altos e baixos que todo baiano passa. Em particular no tocante a resiliência do racismo em nossa sociedade e reflexões sobre momentos importantes da minha vida política e cultural.

É um livro de memórias?
Não chega a ser um livro de memórias, pois não tem o rigor metodológico que este gênero deve ter. Mas são versões das minhas andanças. E digo versões pois é a minha visão particular sobre esses acontecimentos e, já que muitos deles envolvem outras pessoas, é bem possível haver outros pontos de vista. Por isso mesmo abro o livro afirmando que são meros fragmentos. “Quero alertar a todos(as) que os relatos, histórias ou causos que encontrarão aqui não possuem qualquer compromisso com a verdade alheia, rigor científico ou fontes acadêmicas. São meros fragmentos guardados na memória que compartilho publicamente, tendo como únicas referências as minhas próprias recordações e as dos amigos mais próximos.”

Quais temas o senhor aborda?
Inicialmente, falo da memória que tenho da minha infância num bairro pobre da cidade de Salvador, o Solar do Unhão, falo também sobre os afetos e conflitos familiares que vivi ao longo da vida e creio que boa parte das famílias pretas e pobres na Bahia, também vivem. Falo ainda sobre a importância da educação no capítulo “Aprender a ler para ensinar aos camaradas”. Ressalto a importância que o Partido Comunista Brasileiro teve na minha vida política e de cidadão. O Partidão foi na verdade uma “verdadeira escola política e de vida”. Trato um pouco da minha vida estudantil, a minha entrada no mundo da cultura por meio das Mostras de Som na Escola de Arquitetura e do gosto pelas palavras escritas e faladas que tive desde pequeno. Também abordo minhas andanças pelo continente africano, meu prazer com o carnaval e o futebol e a presença de mulheres fortes com as quais convivi, tanto pessoalmente quanto no mundo da política, assim como no mundo do trabalho. E nos últimos capítulos falo um pouco sobre as homenagens que tive ao longo da minha trajetória, homenagens que me dão muito orgulho.

No livro, o senhor destaca que exercer a cidadania na plenitude, às vezes, pode custar caro, ainda mais no regime ditatorial que vigorava na sua juventude. Acha que essa realidade mudou?
Claro que os tempos são outros e muita coisa mudou positivamente se compararmos com o período ditatorial, mas ainda existem fortes entraves para o exercício pleno da cidadania, ainda mais se você for uma pessoa preta no Brasil. Exemplo nesse sentido são as abordagens policiais nos bairros pobres do nosso país, onde meter o pé na porta substitui a autorização judicial e a bala substitui o devido processo legal. Lamentavelmente, ainda se faz presente no imaginário da população de que “branco correndo é atleta e preto correndo é ladrão” e aí não há cidadania que resista.

Como exercer a cidadania em um estado e um país racistas como o nosso?
Em primeiro lugar é preciso ter muita firmeza e consciência dos nossos direitos. Em segundo lugar, tem que criar e manter uma rede de solidariedade a esse direito, particularmente junto a organizações do movimento negro, dos direitos humanos e do ministério público. E, por fim, tem que ter coragem para os enfrentamentos necessários.

Como se deu a parceria com a Editora Solisluna?
Eu conheço Enéas Guerra desde a década de 70, tínhamos um amigo em comum, chamado Beto Amarelo (que se foi por conta da Covid) e que nos aproximou. À época ele editava uma Revista que eu adorava e se chamava “Viver Bahia”. Aliás, tenho essa coleção até hoje. Portanto, lá se vão mais de 50 anos e por via de consequência também conheci Valéria Pergentino, que além de ser uma excelente editora, também é esposa de Enéas. Desde o primeiro momento que pensei em escrever o livro a Solisluna foi a primeira opção por conta dessa antiga relação. Tive várias outras ofertas, mas “estava escrito nas estrelas” que seria a Solisluna. Depois que vi o lançamento do livro de João Américo Bezerra, outro grande amigo de mais de 50 anos, aí não tive dúvidas. Enfim, espero que as pessoas gostem do livro, até porque, durante um bom tempo, muito dos meus amigos/as me cobraram esse projeto. Espero que se divirtam, mas que também reflitam sobre as idiossincrasias que a Bahia produz, como se fosse algo absolutamente natural. E uma dessas idiossincrasias é o racismo entranhado no corpo e na alma do baiano e que a nós negros e negras não dá sossego. E, claro, toca a zabumba que a terra é nossa!

 

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